A partir do que ocorreu com dona Francisca, sugiro que retiremos as regras que impedem as pessoas de criar e empreender, mas regulamentar apenas as atividades que podem gerar um perigo real à sociedade 

Por Matheus Delbon

 

Há uns dez anos, quando ainda mantinha um escritório de advocacia no centro da cidade, entra uma senhora perguntando se fazíamos um contrato modelo de prestação de serviços de limpeza. Respondi que sim e falei o valor que cobrávamos para este tipo de serviço. A senhora ainda em pé parou e começou a olhar detalhadamente meu escritório e comentou:   

– Está um pouco empoeirado seu escritório doutor!   

Meio sem jeito respondi que sim, dizendo que estávamos com problemas com nossa última faxineira, que estava movendo até uma ação trabalhista contra o escritório. Assim, para evitar problemas, nós mesmos estávamos nos revezando na limpeza. Ela abriu um sorriso, sentou-se e disse que era justamente por isso que precisava de um modelo de contrato. E contou sua história.   

Trabalhava como faxineira em uma grande empresa de terceirização de limpeza, que atuava principalmente em ambientes comerciais. Daí, conversando com empresários, enquanto trabalhava, descobriu que o valor pago por sua faxina era muito maior que o preço médio que as “diaristas” cobravam. Ficou curiosa e queria entender o porquê. Em geral, ela ouvia que por ser uma empresa terceirizada, tinha contrato, o que evitava problemas trabalhistas e podia contabilizar a despesa.   

Bingo, pensou! Se eu conseguir um contrato desse tipo posso oferecer faxina em locais comerciais, que, segundo ela, era bem mais tranquilo do que trabalhar em casas de família. Mesmo sendo um preço menor que o das grandes empresas, os ganhos seriam maiores. Nesta hora, o advogado deu lugar ao administrador, pois a senhora à minha frente havia feito – de forma intuitiva – uma profunda análise de demanda, buscava uma forma de agregar valor a seu produto, estava mapeando o processo para acessar mercados e tentava superar as cláusulas de barreira.   

Expliquei que não era um simples contrato, mas uma cadeia de eventos burocráticos que dariam poder a este contrato. Sugeri que primeiro ela deveria buscar um contador para abrir uma empresa, ter CNPJ, um alvará da prefeitura para emitir notas fiscais. Depois expliquei que seus trabalhadores poderiam ser seus sócios ou funcionários registrados, como ela foi na antiga empresa que trabalhava.   

Sem esmorecer, enquanto eu descrevia a complexa burocracia brasileira, ela voltou a me lembrar que meu escritório estava empoeirado e perguntou se poderia assessorá-la em permuta por algumas faxinas. Como advogado, sabia que desta forma existiria onerosidade e seria algo eventual, o que afastaria o fantasma de uma ação trabalhista. E, o melhor, teria meu escritório devidamente limpo por algumas semanas. Excelente negócio!  

Assim, iniciamos a jornada de empreender no Brasil, que em princípio parecia simples, mas não foi. Ela encontrou muitas dificuldades em constituir uma empresa com seus familiares, emitir nota fiscal, fechar contratos, trabalhar e melhorar as condições de sua família. Foram sete meses percorrendo repartições públicas.  

Como sua pesquisa de mercado se dava por comparação à empresa que trabalhava – “benchmarking” para usar um jargão de administração – seu contador também aceitou sua permuta, explicando que uma empresa de “cessão de mão de obra” na época teria uma alta carga tributária e não poderia optar pelo SIMPLES. Mas, passada esta fase de idas e vindas, ela conseguiu uma brecha para enquadrar seus “complexos” serviços em um regime de tributação mais justo.   

O problema é que em seguida veio a prefeitura e o alvará com sua lista de exigências burocráticas como:   

– Onde sua empresa irá armazenar os produtos de limpeza? O local atende as normas da vigilância sanitária?   

– A sede de sua empresa está em uma área em que o plano diretor admite o uso comercial?   

– Como será o transporte dos produtos de limpeza até o local de aplicação? A senhora sabe que existem restrições para carga e descarga em diversas áreas da cidade?   

– Possui todos equipamentos de segurança, consultou um técnico em segurança do trabalho?  

– Já verificou as normas com o sindicato da categoria, caso contrate alguém?   

– E não esqueça do laudo dos Bombeiros!  

E a lista continuava …   

Mas, como explicar que se tratava apenas de uma senhora que queria fazer limpeza em estabelecimentos comerciais com seus filhos, que a “sede” da empresa seria sua casa, que os materiais seriam guardados no quartinho dos fundos e que iria transportar seus materiais em uma pequena maleta usando transporte público?   

Usando sua simpatia, foi superando cada uma das barreiras burocráticas, contando com o apoio de muitos agentes públicos, que entendiam sua situação e “ajudavam” a transpor cada uma das exigências, que convenhamos nem deveriam existir.   

Ela não desistiu, levou meses, mas conseguiu regularizar sua empresa e eu pude pagá-la mediante sua Nota Fiscal nº1. Seu “benchmarking” continuou. Logo tinha uma logomarca, identidade visual completa, uniformes e sua coragem de oferecer um “programa de permuta” com empresas especializadas, como foi meu caso.   

O final desta história é feliz. Os clientes vieram, ela melhorou seu padrão de vida, investiu, pode contratar pessoas e hoje tem veículos com sua logomarca circulando pela cidade. Ainda sou seu cliente, e vejo Dona Francisca reclamando da burocracia atual, dos impostos, de como é difícil manter seus funcionários, enfim, uma legítima empreendedora brasileira. Mas, quantas Donas Franciscas ficaram pelo caminho, desistiram de abrir seu negócio, de empreender? Quantos talentos foram perdidos, quanta riqueza deixou ser gerada, quantos empregos?   

Muita coisa melhorou, como a regulamentação do MEI (Micro Empreendedor Individual), que teria facilitado a vida de muitas pessoas há 10 anos. Mas parece que a burocracia está enraizada em nossa cultura. As prefeituras vão, pouco a pouco, criando normas até mesmo para estes pequenos empreendedores. E ainda tem o papel de alguns vereadores que enchem o peito para dizer que vão regulamentar esta ou aquela atividade e que isto trará empregos…   

O caminho é outro. Vamos retirar as regras que impedem as pessoas de criar, de empreender. Afinal, novos negócios surgem e desaparecem naturalmente. Vemos a discussão em diversas cidades sobre serviços como Uber, Airbnb, que precisam de regulamentação, para ter um carimbo do poder público: “isso pode”. Não! Devemos regulamentar apenas as atividades que podem gerar um perigo real se não atenderem certas regras. E assim colocar o carimbo “isso não pode”. 

 

* Esta crônica que você está lendo faz parte do livro “CIDADES EFICIENTES: Crônicas da administração pública”, de autoria de Matheus Delbon.

O autor gentilmente autorizou a republicação deste texto, desde que a fonte seja devidamente citada e o conteúdo não seja alterado ou adaptado de qualquer forma.

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