Um problema comum para as Organizações Socais Civil que prestam serviços principalmente assistenciais, como Santas Casas, APAEs, e diversas outras entidades filantrópicas e que recebem recursos públicos pelo Marco Regulatório do Terceiro Setor (Lei 13.019/2014), seja por termo de fomento, colaboração ou parceria, tem comumente se deparado com uma questão frequente onde ter a conta corrente sem tarifa prevista na lei, e em não conseguindo tal conta como proceder? Os bancos estatais (Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil) tem se negado a abrir contas isentas, ações judiciais não faltam e na maioria dando ganho a entidades, mas sabemos que o processo judicial normalmente não é a melhor solução e muito menos a mais econômica. Ainda nos tempos atuais em que novas opções bancárias surgem e há inúmeros bancos com contas sem tarifas ou bancos privados dispostos a dar isenção por motivação social (ou até mesmo de marketing), mas estaria tal dispositivo realmente amarrando aos bancos estatais?

Para aclarar um pouco apresentamos um estudo detalhado do art. 51 da Lei 13.019/2014 do ponto de vista semântico e hermenêutico esperando poder auxiliar as Organizações Socais Civis bem como a administração pública a saírem de posições temerárias e buscarem solucionar o problema, principalmente no âmbito municipal na qual a força de buscar mudança nos grandes bancos estatais ou controlados pelo governo é mínima, buscando sua real interpretação.

Primeiramente nos atentaremos ao texto do referido artigo:

Art. 51. Os recursos recebidos em decorrência da parceria serão depositados em conta corrente específica isenta de tarifa bancária na instituição financeira pública determinada pela administração pública.

O texto traz claramente “… conta corrente específica isenta de tarifa bancária…” ou seja conclui-se ser tipo específico de conta corrente que não comporta tarifa, e não uma conta comum isenta de tarifa pois para que tivesse este sentido no bom português demandaria de uma vírgula, tendo a seguinte redação “conta corrente específica, isenta de tarifa bancária” e como as modalidades de contas são criadas pelo Banco Central e que determina suas regras, os bancos ao negarem a isenção de tarifas para as operações oriundas da Lei 13.019/2014 tem alegado que as tarifas estão previstas no contrato de abertura e passíveis de cobrança. O Banco Central poderia ter criado modalidade específicas de contas correntes para este fim, até melhor regulando as mesmas criando contas que impedissem o saque ou cheque uma vez que tais operações também são vedadas como vemos no seguinte artigo:

Art. 53. Toda a movimentação de recursos no âmbito da parceria será realizada mediante transferência eletrônica sujeita à identificação do beneficiário final e à obrigatoriedade de depósito em sua conta bancária.

Situação que garantiria a eficácia plena da norma jurídica permitindo maior controle por parte dos órgãos reguladores e do poder público na destinação dos recursos, também facilitaria e muito as operações e prestações de contas por simples conciliações bancárias que acredito ser este o objetivo da norma.

Muitas vezes a norma se encontra a frente da realidade como vemos no caso em tela, ainda nos atendendo ao art. 53 temos “transferência eletrônica sujeita à identificação do beneficiário final” esta identificação somente constava do estrato quando realizado pagamento por cartão de débito, e em via de regra a modalidade mais utilizada para grandes pagamentos eram TEDs na qual no extrato somente consta envio de TED sem identificação do beneficiário que demandava de outros documentos como o próprio comprovante da TED para suplementar tal informação, atualmente pela inclusão de novos sistemas de pagamento como PIX esta situação estaria superada, na qual já no estrato possui a identificação do beneficiário, além do problema de ter quer promover a limpeza do extrato com os usuais erros e estornos de envio de TED que dificultavam a conciliação via extrato, ocorre que tal modalidade somente passou a existir em 2020 pois o Pix utiliza um sistema com todas as características do blockchain tecnologia trazida pelas criptomedas, estando assim a Lei 13.019/2014 prevendo um tipo de tecnologia que só viria a existir 6 anos depois. Mas isto é normal pois o legislador é mais imbuído da vontade legislativa que pela realidade factual.

Retornando ao caso específico conheço diversos hospitais que procuraram a Caixa Econômica Federal solicitando a abertura deste tipo de conta, sendo informada que não existia uma modalidade de conta para este fim, como existem outras sem tarifas para o poder público como a conta para recebimentos de convênios federais por exemplo e que portanto não poderia isentar das tarifas, que há anos vem penalizando a entidade.

Ainda para elucidar há quem defenda que o Banco do Brasil poderia ser uma outra alternativa de “instituição financeira pública”, contudo o próprio Banco do Brasil em diversas ações movidas por entidades do terceiro setor suscitando tal norma alega o contrário como por exemplo no processo: TJ-SP – AC: 10480157420188260576 SP 1048015-74.2018.8.26.0576, Relator: Achile Alesina, Data de Julgamento: 20/02/2020, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/02/2020

“… Recorre a instituição financeira argumentando que a requerente deveria abrir conta corrente específica para o recebimento dos recursos e em instituição financeira pública; que o Banco do Brasil S/A é uma sociedade de economia mista e que a requerente concordou com o pagamento das taxas e tarifas no momento em que firmou o contrato de abertura de conta, as quais são destinadas à manutenção da conta e que ao caso não se aplica a repetição.”

Ou seja o Banco do Brasil também se nega, inclusive judicialmente, a abrir tais contas ou a fornecer uma conta corrente tradicional isenta de tarifas.

Mas ainda nos atentando ao texto da lei que cita “instituição financeira pública” que seria? O que se vê na prática é a confusão com o conceito de instituição financeira oficial, que aí sim teríamos o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, está é a terminologia adotada em diversos outros diplomas legais e também pelo Tribunal de Contas da União (TCU) quando em alguns casos expressa claramente serem estas duas instituições financeiras no âmbito federal como por exemplo no TC 010.882/2009-7 onde temos:

“5.4 No primeiro caso, não se verifica alterações significativas na forma como era feito anteriormente, quando o pagamento do salário dos servidores era efetuado por intermédio do Banco do Brasil – BB ou da Caixa Econômica Federal – CEF. Neste caso a diferença fica no fato de que instituições financeiras oficiais federais passam a competir pelo direito e exclusividade desses pagamentos”

Por questão lógica que se em suas defesas o Banco do Brasil sustenta não ser uma “instituição financeira pública” mas é incluído pelo TCU no conceito de “instituições financeiras oficiais” fica evidente se tratarem de conceitos diferentes. Mas com relação a Caixa Econômica Federal dizemos que esta é um banco público mas esta terminologia é uma simplificação O Decreto-Lei Nº 759 de 1969 que reorganiza a Caixa Econômica nos moldes atuais a institui como como uma “empresa pública” que exerce atividade bancária ou seja uma empresa estatal, ou seja a propriedade da empresa é do poder público, então também não podemos confundir o conceito de empresa pública que é um banco com “instituição financeira pública”.

Vamos entender o que existem diversos tipos de instituições financeiras além dos tradicionais bancos comerciais que vemos, também são instituições financeiras, os Bancos de Investimentos, Bancos de Fomento, Bancos Múltiplos, Financeiras, Corretora de Valores, Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs), Instituições de Microcrédito, Companhias Hipotecárias, Gestoras de recursos (asset managers), o próprio Banco Central e outras, cada uma com sua regulamentação específica.

Podemos ainda entender que palavra pública pode conter diversos significados além do que pode concluir alguns apenas como sinônimo de estatal ou controlado pelo governo, seu sentido mais amplo é acesso coletivo, ou ao ver uma placa “acesso ao público” imaginamos que seria destinado ao governo? Ao entendermos cada uma das diversas instituições financeiras existentes temos que algumas são abertas a coletividade e algumas não, destinadas a apenas um grupo específico e alguns casos exigindo-se até mesmo intermediário como corretoras. Evidente que seria estranho permitir que os recursos públicos destinados ao terceiro setor oriundo de impostos fosse gerido por fundos ou instituições financeiras de alto risco de difícil controle. Evidente que é acesso público para estas instituições que é bem tutelado pois sem este dispositivo seria possível entender possível movimentar estes recursos em uma conta “offshore” por exemplo.

Assim ante a ambígua redação do artigo 51 da Lei 13.019/2014 podemos tecer algumas conclusões:

1. Da conta específica

Que por “conta corrente específica isenta de tarifa bancária” o termo específica se refere a conta, ou seja uma modalidade específica de conta corrente, pois de outra forma teria o legislador formulado sentenças como “conta corrente específica para cada termo celebrado…” “conta corrente individualizada…”. Assim um tipo específico de conta que como já relatamos poderia ter regulado em sua forma as limitações impostas no art. 53 criando o instrumento administrativo adequado como acontece por exemplo na Conta Corrente de Convênios regulamentada pela Portaria Interministerial nº 507/2011 para recebimentos de verbas federais via SICONV – Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasses definindo suas peculiaridades.

Contudo esta modalidade específica de conta corrente para recebimento de repasses públicos através dos termos previstos na Lei 13.019/2014 não foi criado ou definido, estando assim o texto legal prejudicado sendo uma norma não autoaplicáveis ou não autoexecutáveis pois demandam de um desdobramento, ou seja, necessitam da atividade do legislador ou regulador para complementar lhes o sentido, para completar lhes a existência e tornarem factíveis e aplicáveis. Estando assim este artigo em latência aguardando a normatização desta modalidade de conta específica podendo ser oferecida pelas instituições financeiras para que se torne executável. Lembrando o ensinamento de José Afonso da Silva: “As normas não auto executáveis são as que não revestem dos meios de ação essenciais ao seu exercício os direitos, que outorgam, ou os encargos, que impõem: estabelecem competências, atribuições, poderes, cujo uso tem de aguardar que a Legislatura, segundo o seu critério, os habilite a exercerem”.

2. Do conceito de “instituição financeira pública”

Como visto a visão míope de “instituição financeira pública” como sendo Caixa Econômica Federal, Banco Brasil ou outros bancos cujo o poder público detenha o controle, acredito derivar o uso e costume deste restrição impostas aos repasses federais em especial SICONV – Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasses que já mencionamos, que define a instituição financeira para movimentação dos recursos na Portaria Interministerial nº 507/2011 que não deixa dúvida sobre o significado pretendido:

“Art. 43…

XIII – a obrigação do convenente de manter e movimentar os recursos na conta bancária específica do convênio ou contrato de repasse em instituição financeira controlada pela União, quando não integrante da conta única do Governo Federal.”

 

Estas sim no exemplo são Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste (BNB) e Banco da Amazônia. Acredito que é justamente esta norma que contaminou a interpretação da Lei 13.019/2014, pois como praticamente todos os estados e municípios usam frequentemente o SICONV – Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasses justamente objeto da portaria interministerial citada para recebimentos em seu dia a dia de recursos federais aplicou-se uma analogia por costume que talvez pela dificuldade de se fazer uma análise mais profunda como fazemos agora e também contaminada pelo ranço temerário que permeia o direito administrativo brasileiro que tende adotar posições cômodas e simplórias para evitar “problemas”, diversas manifestações de interpretação e ressaltamos que em sua maioria sem nenhum aprofundamento jurídico hermenêutico se espalham quase que se tornando um pensamento hegemônico de que “instituição financeira pública” seriam as “instituição financeira controlada pela União”, ou os chamados bancos oficiais.

Assim temos que qualquer banco comercial de amplo acesso que atenda de universal a pessoas físicas e jurídicas podem ser entendidos como “instituição financeira pública”, permitindo que os termos previstos e repasses esculpidos sob a tutela da Lei 13.019/2014 pode ser realizada em qualquer banco comercial, buscando melhor facilidade e conveniência para as partes.

  

Vale ressaltar que o bem maior tutelado no art. 51 seria garantir os princípios constitucionais da administração pública do art. 37 da Constituição Federal, em especial o da “eficiência” garantindo que os já escassos recursos públicos seja corroídos por tarifas bancárias, assim ante a impossibilidade de obtenção de tais contas administrativamente junto aos bancos, tem levado algumas instituições do terceiro setor a ingressarem na justiça para obtenção de tais benefícios. Mas pergunto se é notório que atualmente justamente estes bancos estatais ou com participação estatal são os que justamente praticam as maiores tarifas, se a iniciativa privada através da adoção de melhores práticas ou ferramentas como banco digitais conseguem oferecer a tão almejada isenção de tarifas não seria um melhor caminho a se adotar em vez do litígio e confronto, que pode ser ainda mais custoso que as já exorbitantes tarifas.

Assim mesmo que ao meu ver o texto legal não tenha se restringido ao bancos estatais ou de participação estatal, pelo princípio da primazia do interesse público caso uma organização social civil tenha possibilidade de menores tarifas e taxas bancárias em instituições privadas ou cooperativas seria mais que justificável a adoção desta pois o dano ao erário de pagamentos de taxas desnecessárias que simples preciosismo normativo daqueles que militam de forma cega ao texto da lei em interpretações rasas e fáceis escondendo sua incapacidade de promover o devido aprofundamento da norma. Sempre provoco meus colegas que militam no direito administrativo é fácil dizer que não pode sem dar solução, evita-se o risco, mas este comportamento em nada contribui para o avanço da ciência jurídica administrativa.

4. Responsabilidade da obtenção da conta

Ainda cabe ressaltar a parte final do artigo 51 temos “…Os recursos recebidos em decorrência da parceria serão depositados em conta corrente específica isenta de tarifa bancária na instituição financeira pública determinada pela administração pública”. Ou seja quem determina a instituição é administração portanto caberia a ela escolher a instituição que ofereça a modalidade específica na qual já discorremos e indicar. Assim o dever de conseguir tais contas é do poder público, deve ser este que deve solicitar junto as instituições tais contas e indicar as Organizações Sociais Civis e aqui coloco minha experiencia pessoal tendo já ocupado cargo de diretor administrativo em instituição financeira seria muito simples obter tais contas junto a instituição financeira que gere a folha de pagamentos ou impostos de um município por exemplo dentro de uma negociação normal ou mesmo sendo clausula do edital de seleção de tais instituições um pouquinho de vontade administrativa e política resolveria a questão é ressalto de responsabilidade da administração pública, simplesmente delegar esta responsabilidade as entidades do terceiro setor que se mantém heroicamente em nosso país é uma absoluta irresponsabilidade e ainda sendo agravada em muito casos que vejo no dia a dia que exige-se da entidade que retire da prestação de contas tais tarifas fazendo uma leitura mais que simplória do referido artigo mas sim maldosa e irresponsável para que a entidade custeie de seus recursos próprios que em geral vem de doações ou outras fontes exíguas de recursos.

Neste tópico concluo que cabe a administração pública dizer em qual instituição financeira, e ressaltando podendo ser estatal ou privada, deverão ser abertas as contas específicas aos termos previstos na Lei 13.019/2014, e não o fazendo ou não encontrando uma instituição financeira disposta a disponibilizar tais benefícios, cabe apenas aceitar a escolha da Instituição que melhor conseguir tarifas menos onerosas, ou indicando banco que cobra tais tarifas aceitas que tais tarifas componham o plano de trabalho e custeie tais despesas.

Por fim cabe traçar alguns caminhos a fim de melhor aplicar este dispositivo legal, a Lei 13.019/2014 traz um aspecto interessante é que cabe a cada ente federativo regulamentar localmente tal lei, assim seria muito prudente localmente esclarecer a obscuridade do art. 51, definindo melhor a escolha da instituição financeira e a reponsabilidade sobre as tarifas caso elas não possam ser evitadas e caberá caso não consiga a administração pública buscar negocialmente ou judicialmente a obtenção de tais contas. Acredito até que a abertura de editais para que instituições ofereçam contas nestes termos pode ser realizado e com algum sucesso. Ou se caso a entidade consiga a pretendida isenção em entidade que as que se estigmatizou (Caixa ou Banco do Brasil) cabe aceitar de bom grado pela primazia do interesse público.

Concluímos que art. 51 da lei 13.019/2014 refere-se a modalidade de conta específica não regulamentada, portanto não autoexecutável, que a expressão “instituição financeira pública” não se confunde com bancos oficiais ou instituição financeira controlada pela União e que a responsabilidade por buscar e conseguir contas correntes nos moldes previstos em Lei é objetivamente da administração pública, que não obtendo cabe aceitar a livre escolha da instituição e promover o ressarcimento das tarifas pagas.

Matheus Delbon, administrador público graduado pela UNESP, advogado graduado pela UNIP, especialista em Direito Empresarial pela FGV Law, aluno do Public Leadership Credential na Harvard Kennedy School, Diretor da Evoluta Administração, diretor da Federação Nacional dos Administradores (FENAD) professor e coordenador de pós graduação da Fundação Armando Álvares Penteado- FAAP.

Artigo originalmente publicado no Jus Brasil https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-dilema-da-conta-corrente-especifica-isenta-de-tarifa-bancaria-em-instituicao-financeira-publica-prevista-no-marco-regulatorio-do-terceiro-setor/1162650893 

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